Um romance para ser saboreado. Assim saio da leitura de Os arcanjos, de Marcelo Moraes Caetano (Editora Jaguatirica, 2017). A primeira coisa que faço é buscar por músicas de Schubert. Estou a ouvir Serenata. Os acordes atravessam as cenas finais que estão gravadas em minhas retinas. Sim, eu vi. E agora ouço. É um livro para sentir e aprender. Saborear. Quem sabe esse exímio pianista que Marcelo é não compôs as notas desta magnífica obra ao som de Schubert.
Com o domínio da língua e uma vivência cultural ímpar, nos faz sair de sua leitura mais conhecedores das coisas do mundo, da cultura em geral, tal qual nos fazem os livros de Umberto Eco. Da verve umbertiana, a obra apresenta muitas citações e avança sempre a dialogar com a literatura, por suposto, com a arte em geral, com a música brasileira, notadamente, mas não só. Dialoga também com a ciência, com o conhecimento popular e dos povos originários, das religiões...
Como físico que sou, não passou em branco o uso de teorias físicas para tipificar sentimentos, por exemplo, o medo.
“Saber nem sempre é suficiente para retirar-se o medo.
O medo se retira à força da prática. O saber é quântico,
mas o medo é ainda mecânico.” (pág.53 )
Em outros momentos a física aparece em total sintonia com o texto e com os sentimentos das personagens.
O tratado sobre humildade que nos oferece no Capítulo 8 é profundamente filosófico. Chamando a atenção para o fato de que natureza é, em si, exuberante, a humildade é, de certa forma, luxuosa. A personagem Dora personifica essa lição ao longo da história. Não é retórica. É vivência silenciosa de uma personagem tão real.
Estou a falar de Dora, mas é o menino Gabriel quem narra e vive as agruras e delícias que a vida pode reservar. As singelezas dos primeiros amores e um encontro que muda sua vida. Curioso notar que a pessoa encontrada não fala, nem quando o capítulo inteiro é um diálogo (cap. 20), mas apenas reage e sente. Não ouvimos a voz desta pessoa que é calada, mas onipresente. Tímida, mas governante de destinos. A pessoa apenas é. E a busca por trás destas (des)venturas é uma busca pelo ser.
Espanta também a bizarria do tempo. Se passa em uma cidade interiorana fictícia, o avô de Gabriel é rico fazendeiro e usineiro, a ida para essa cidade estudar em um Liceu. Tudo isso leva a crer que se trata de um romance de época, mas, do nada, surgem elementos dos dias atuais. Como se quisesse dizer que a história é no presente e as personagens, que nos representam nestas situações, estão no passado com ideias preconceituosas e muito mais sentimentos deploráveis.
Ainda sobre o tempo, “O tempo não existe” , diz a velha Totonha (que personagem!). A velha que encarna ex-escravizados e indígenas é cheia da sabedoria que o anjo Gabriel vai buscar. Sabedoria sobre a natureza e as pessoas que o ajuda a aprender a usar e pele para sentir. Com a velha Totonha, aprendemos a subverter a palavra "superficial". Suas receitas de bolos e pães nos abrem o apetite. Comer ajuda a ouvir melhor.
A avó de Gabriel, Dalva, é um exemplo de força descomunal e um exemplo do que seja domínio de si. Ela luta pela felicidade do neto, não pensa nas convenções sociais. A mãe, Sônia, é exemplo de abnegação. Pretinho e Seu Lucas, exemplos de companheirismo. Já o avô Eugênio personifica o atraso do pensar, a violência, um modo de vida opressor. Pessoas. A história fala de pessoas.
O capítulo 24 é uma doce carta de Gabriel. Nela, ele teoriza:
“O amor é cientificamente a poesia. Enunciados, frases,
ideias, revoluções. Provo pela arte que são. ” (pág.155 )
Poética passagem, como outras tantas. Sim, ele fala de poesia e não se esquece dela no texto, nas imagens. O romance é cheio de poesia.
À exceção de uma conversa que levou a um divórcio, tudo no romance, as maiores atrocidades, inclusive, são veladas. Vistas por frestas de portas e da alma, principalmente. Tudo se consuma. Temos visões vivas, mas, por vezes, são ecos deixados ao longo do texto.
Ao fim, um professor de Gabriel diz que a “ ... vida é uma teoria”. Fazemos “teorias cotidianas” o tempo todo. Se para Euclydes da Cunha, “Viver é adaptar-se”, para Marcelo Caetano “Viver é abstrair”. Duas maneiras de olhar um lado prático e ao mesmo tempo misterioso.
Mistérios.
Sons abafados.
Mas a crueza do inominável se apresenta e nos faz refletir. O que estamos a calar, hoje?
Sobre o autor
É Psicanalista, Professor Adjunto de Língua Portuguesa e Filologia Românica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia (cadeira 38), da Academia Fluminense de Letras (cadeira 18), do PEN Clube do Brasil (Rio-Londres), da Académie des Arts, Sciences et Lettres de Paris, da Academía de Letras y Artes de Chile e de outras instituições culturais no Brasil e no exterior. Foi professor adjunto do CAp-UERJ (Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira), de onde pediu exoneração. É autor de mais de 50 livros publicados no Brasil e no exterior. Suas obras já foram premiadas pela ONU, Unesco, Academia Brasileira de Letras e universidades no Brasil e no exterior, como PUC-Rio, UFRJ, Kendall College Chicago, Laureate International Universities, Fundação Oswaldo Cruz, Fundação Casa de Rui Barbosa, Museu Imperial de Petrópolis, Museu Nacional. Em 2011, recebeu a Médaille e a Comenda de Vermeil de Paris. É roteirista, gramático, autor de gramáticas normativas, e pianista clássico com prêmios internacionais (vencedor do Concurso Internacional Solistas Instrumentistas Ciudad de Cordoba, 1989; 2. lugar do Concurso para Solistas da Orquestra Sinfônica de Viena, Áustria, 2010, entre outros) desde os 14 anos de idade, realizando, desde então, recitais nas Américas e na Europa. É tradutor de inglês, francês, alemão, espanhol, italiano, latim e grego, estudioso das filologias russa, mandarim e galega.